Texto Base: Jó 8.1-4; Jó 18.1-4; 25.1-6
“Se teus filhos pecaram contra ele, também ele os lançou na mão da sua transgressão” (Jó 4:7,8).
Jó 8:
1.Então, respondeu Bildade, o suíta, e disse:
2.Até quando falarás tais coisas, e as razões da tua boca serão qual vento impetuoso?
3.Porventura, perverteria Deus o direito, e perverteria o Todo-Poderoso a justiça?
4.Se teus filhos pecaram contra ele, também ele os lançou na mão da sua transgressão.
Jó 18:
1.Então, respondeu Bildade, o suíta, e disse:
2.Até quando usareis artifícios em vez de palavras? Considerai bem, e, então, falaremos.
3.Por que somos tratados como animais, e como imundos aos vossos olhos?
4.Ó tu, que despedaças a tua alma na tua ira, será a terra deixada por tua causa? Remover-se-ão as rochas do seu lugar?
Jó 25:
1.Então, respondeu Bildade, o suíta, e disse:
2.Com ele estão domínio e temor; ele faz paz nas suas alturas.
3.Porventura, têm número os seus exércitos? E para quem não se levanta a sua luz?
4.Como, pois, seria justo o homem perante Deus, e como seria puro aquele que nasce da mulher?
5.Olha, até a lua não resplandece, e as estrelas não são puras aos seus olhos.
6.E quanto menos o homem, que é um verme, e o filho do homem, que é um bicho!
INTRODUÇÃO
Nesta Aula trataremos da teologia de Bildade, amigo de Jó. Sua teologia não era muito diversa da de Elifaz, que afirmava que Jó deixara de ter prosperidade material porque havia nele pecado oculto. Aos justos, ensinava Bildade, Deus não faz outra coisa senão cumular-lhe de bens e de riquezas. Este tipo de teologia falaciosa é ainda pregado hoje, com uma nova roupagem, mas com o mesmo pensamento distorcido sobre Deus, pensamento este, aliás, que o Senhor disse não lhe ser agradável (Jó 42:8).
Também, trataremos da contraposição que Bildade fez do caráter de Deus com o pecado humano. Segundo ele, se Deus é santo e justo Ele não compactua com o pecado oculto de uma pessoa; esta doutrina é constatada ao longo de toda a Escritura, entretanto, ao analisar o Livro de Jó, vemos que ela não se aplica ao patriarca Jó, pois ele nada tinha para esconder. Quando há sofrimento não se quer dizer que há pecado oculto.
Em terceiro lugar, analisaremos a tese de Bildade ao afirmar que Deus é um ser muito distante e que, devido a sua onipotência e grandeza, está muito longe do mortal; ou seja, Deus é um ser transcendente, mas não imanente. Já explicamos na Aula anterior que Deus é transcendente e imanente, ou seja, a despeito de habitar nas alturas mais insondáveis, e apesar de infinito e imenso, não permanece alheio às suas criaturas.
I. O PECADO EM CONTRASTE COM O CARÁTER JUSTO E SANTO DE DEUS
Neste tópico, trataremos do primeiro discurso de Bildade (Jó 8:1-22). Aqui, percebe-se que Bildade tinha uma posição muito parecida com a de Elifaz, personagem que estudamos na Aula anterior. No entanto, seu método de raciocínio e sua forma de se aproximar de Jó eram diferentes.
Bildade usou a corrente de pensamento geral de Jó e procurou contestar as conclusões de seu amigo. Jó declarou que a sua causa era justa (Jó 6:29,30). Isso deixou transparecer que Deus era injusto. Jó também havia argumentado amargamente que a vida do homem é modelada cruelmente pelas pressões insuportáveis colocadas sobre ele por um Deus indiferente e inacessível (Jó 7:1-7, 17,18). Diante dessas duas acusações, Bildade declarou que Deus é absolutamente justo – tanto que ele recompensa o reto e pune o ímpio. Bildade apoiou sua posição nas tradições dos seus ancestrais. (1)
1. Deus é justo e reto
Bildade afirmou que Deus é justo e reto (Jó 8:1-7). Após acusar Jó de vociferar palavras irresponsáveis, Bildade defendeu a justiça de Deus em punir o perverso e recompensar o justo (Jó 8:2,3), e como Deus não era injusto, então, Jó deveria reconhecer o seu pecado, pois ele estava sendo terrivelmente afligido:
Então, respondeu Bildade, o suíta, e disse:
Até quando falarás tais coisas, e as razões da tua boca serão qual vento impetuoso?
Porventura, perverteria Deus o direito, e perverteria o Todo-Poderoso a justiça?
Se teus filhos pecaram contra ele, também ele os lançou na mão da sua transgressão.
Mas, se tu de madrugada buscares a Deus e ao Todo-Poderoso pedires misericórdia,
se fores puro e reto, certamente, logo despertará por ti e restaurará a morada da tua
justiça.
O teu princípio, na verdade, terá sido pequeno, mas o teu último estado crescerá em extremo.
Essa teologia de Bildade pode ser classificada em duas esferas: a dos maus e a dos bons. Além disso, afirmou, com tremenda indelicadeza, que os filhos de Jó morreram porque pecaram contra Deus. Na verdade, o texto não apresenta nenhuma prova disso, e, mesmo que houvesse, seria crueldade dizer isso a um homem nas condições de Jó, cheio de sofrimento e tristeza. Que dura afirmação ao patriarca, que não se cansava de interceder por eles, mas que jamais tivera conhecimento de algum pecado praticado por eles.
Diz-nos o texto sagrado que Jó se levantava de madrugada e intercedia pelos filhos em caráter preventivo, antes que soubesse de qualquer falta que eles pudessem ter cometido (Jó 1:5), além de santificá-los ao término da série de banquetes, preocupação que era prosseguimento de uma vida de instrução, pois, na infância, havia levado seus filhos à presença do Senhor (Jó 29:5). Vemos, pois, que, enquanto o patriarca tinha uma contínua preocupação com seus filhos, Bildade estava fazendo uso da desgraça para acusar-lhes de pecado, nem mesmo respeitando o luto ou a memória dos falecidos. Essa teologia de Bildade olhava apenas para aparência, que não se preocupava em saber a realidade das coisas; uma teologia acusadora, não uma teologia consoladora e confortadora; uma teologia do dedo em riste, não do ombro amigo. Como temos nos portado com relação aos nossos semelhantes: como Bildade ou como Jó?
Bildade ainda deu uma daqueles religiosos puritanos e narcisistas religiosos que gostam de dar doutrina com base em sua experiência própria adquirida pelo achismo e pela tradição; ele exortou que, se Jó buscasse a Deus, reconhecesse o seu pecado e pedisse misericórdia, ainda haveria esperança de restauração, e assim Jó poderia desfrutar novamente do favor de Deus (Jó 8:5,6). O ponto de vista de Bildade não é a graça que flui de Deus, mas o esforço humano que, por mérito próprio, pretende se justificar diante de Deus. Esta é uma teologia que destaca uma meritocracia humana no processo de justificação diante de Deus.
2. Uma compreensão limitada da natureza de Deus
Segundo a doutrina de Bildade, pecado é a única causa para que os males venham à vida do justo. Segundo ele, o justo sempre terá tudo o que quiser, nenhum mal lhe sobrevirá. Este tipo de ensino pode ter sua lógica perfeita, mas que é uma falácia total.
"Se fores puro e reto, certamente logo despertará por ti e restaurará a morada da tua justiça. O teu princípio, na verdade, terá sido pequeno, mas o teu último estado crescerá em extremo"(Jó 8:6,7).
Era este o pensamento de Bildade: a prosperidade segue apenas os que são justos, e a prova da justiça diante de Deus é a posse de um estado de riquezas. Bildade apela para a história a fim de provar a relação entre a prática do mal e a retribuição divina, mencionando que, do mesmo modo que o junco morre se não houver água, assim acontece aos ímpios e hipócritas (Jó 8:1-13). Segundo Bildade, Deus rejeita os malfeitores e acolhe os justos, a quem lhe agrada encher de bênçãos. Entretanto, esta ideia de Bildade é totalmente negada no livro de Jó.
Jó perdera tudo, mas não tinha pecado; muito pelo contrário, enquanto se encontrava nesse estado de penúria, agradou a Deus, a ponto de o Senhor ter mandado os seus amigos irem até Jó para fazer sacrifícios em favor deles e que Jó orasse por eles, pois só ele havia mantido a sua integridade (Jó 42:8,9). Ao término da prova, Jó recebeu o dobro do que possuía antes. Seu último estado foi maior que o primeiro (Jó 42:12), mas não porque tivesse se arrependido de algum pecado, como insinuou nesciamente Bildade, mas porque ele se manteve fiel, apesar da pobreza absoluta que enfrentava.
Para Bildade, o homem que se esquecer de Deus é o que terá interrompida a sua prosperidade sobre a terra, assim como a erva que se seca (Jó 8:11-13). O esquecimento de Deus, a hipocrisia no relacionamento com o Senhor seriam a fonte da perda de solidez na vida de alguém, razão pela qual perderia o homem a sua casa (Jó 8:15), e a sua esperança ficaria frustrada e a sua confiança passaria a ser como uma teia de aranha (Jó 8:14). Segundo este raciocínio, os bens que alguém possua são uma decorrência direta do relacionamento do seu proprietário com o Senhor; mas, efetivamente, isto não é, em absoluto, a realidade revelada por Deus em Sua Palavra. Tem razão, portanto, o Pr. José Gonçalves ao afirmar que “Bildade traz consigo uma compreensão incompleta e limitada da natureza de Deus, o que faz com que ele pense que o sofrimento de Jó seja a consequência de um pecado oculto”.
3. A imperfeição humana
Em resposta à teoria de Bildade, Jó pergunta: “como pode o homem ser justo para com Deus?” (Jó 9:2). Jó está afirmando que o ser humano é imperfeito, e isto o impossibilita de aproximar-se de Deus. Assim sendo, a autojustificação não passa de presunção declarada. Ele disse:
“Ainda que me lave com água de neve, e purifique as minhas mãos com sabão, mesmo assim me submergirás no fosso, e as minhas próprias vestes me abominarão” (Jó 9:30,31).
Quando Jó perguntou - “como pode o homem ser justo para com Deus?” (Jó 9:2), não estava se referindo ao caminho da salvação, mas expressando seu desespero para tentar provar sua inocência diante de um Deus perfeito e justo. É loucura contender com o Senhor, pois ninguém lhe poderá responder “nem a uma de mil coisas” (Jó 9:3). O Senhor é soberano, sábio e grande em poder, conforme se percebe no controle que exerce sobre os “montes, a terra, o sol, as estrelas, o mar”, além de outras “maravilhas tais, que não se podem contar” (Jó 9:5-10).
Portanto, Deus está bem acima do ser humano; não há como querer comparar o Criador com a Sua criação (Jó 9:3-14). Se Deus está acima do ser humano e este não tem como justificar-se diante de Deus, como, então, saberemos o que é justiça e o que é direito, a fim de podermos dizer, como Bildade, de que a derrocada material de alguém está relacionada com sua hipocrisia ou com sua falta de autenticidade na sua fé? Tomar o progresso material como uma evidência de que a pessoa está em comunhão com Deus, como, milênios depois, alguns seguimentos do cristianismo defendem, é um equívoco muito grande, pois seria desconsiderar a supremacia de Deus em relação ao homem, homem que não tem condição alguma de contender com o Senhor (Jó 9:3).
Jó afirmou que, ainda que fosse justo, ele apenas pediria misericórdia ao Juiz, que é Deus, o único que pode julgar o ser humano. Este mesmo pensamento vemos em Tiago, que nos manda abstermo-nos de julgarmos o irmão (Tg.4:11,12). Observemos que Jó, apesar de ser apontado como sendo um dos três homens que, por sua justiça, salvar-se-iam de calamidades sobre a terra (Ez.14:14-20), não ousava colocar-se entre aqueles que poderiam, pelos bens que possuíssem, determinar-lhes a santidade. Portanto, os adeptos da teoria teológica de Bildade, ou seja, os teólogos da prosperidade material, invocam uma posição que não possuem, a de juízes da santidade alheia. São, portanto, usurpadores de uma atribuição que é exclusivamente de Deus.
Jó afirmou, com veemência, que Deus permite que o ímpio tenha prosperidade material sobre a face da Terra (Jó 9:24) e que isto decorre de permissão divina, pois Deus é o único Senhor, não tendo quem possa exigir-lhe contas (Jó 9:32). Nessa sua resposta à acusação materialista de Bildade, Jó traz a necessidade de uma reconciliação entre Deus e o homem, através de um mediador, alguém que pudesse mudar o destino cruel da humanidade, que nada tinha que ver com a posse de bens, mas com a necessidade de uma nova comunhão entre Deus e o ser humano:
“Não há entre nós árbitro que ponha a mão sobre nós ambos” (Jó 9:33).
Nesta sua resposta à teoria da prosperidade de Bildade, o patriarca Jó apresentou, ainda que sem consciência, como figura, a pessoa de Cristo, que, como mostra este texto, nada tem que ver com a prosperidade material do ser humano.
II. O PECADO VISTO COMO QUEBRA DA MORALIDADE TRADICIONAL
Neste tópico trataremos do segundo discurso de Bildade e a resposta de Jó (Jó 18:1-21).
1. Moralismo por tradição
“Então, respondeu Bildade, o suíta: Até quando andarás à caça de palavras? Considera bem, e, então, falaremos. Por que somos reputados por animais, e aos teus olhos passamos por curtos de inteligência? Oh! Tu, que te despedaças na tua ira, será a terra abandonada por tua causa? Remover-se-ão as rochas do seu lugar? Na verdade, a luz do perverso se apagará, e para seu fogo não resplandecerá a faísca; a luz se escurecerá nas suas tendas, e a sua lâmpada sobre ele se apagará” (Jó 18:1-6).
Neste segundo discurso, Bildade também está comprometido na defesa da moralidade que ele acredita ser a correta. Ele posiciona-se na defesa da moral tradicional. Há um conteúdo ético embutido por trás dos seus argumentos de que a luz dos ímpios se apagará – “Na verdade, a luz dos ímpios se apagará, e a faísca do seu lar não resplandecerá” (Jó 18.5). Bildade posicionou-se em defesa da moralidade que herdara dos antepassados. Não há dúvida de que o rigorismo ético não está presente apenas no discurso de Bildade, mas também pode ser encontrado em outras partes do Antigo Testamento.
Nos dias de Jó, evidentemente havia uma tradição com forte conteúdo moral. Os valores éticos eram cultivados e passados de pai para filho. O capítulo 18 mostra Bildade acusando Jó de tentar subverter essa moralidade tradicional. Bildade entendia que Jó, ao defender-se, não reconhecendo que havia pecado, estava contra o fluxo da história. Ele acreditava que a punição dos maus e a recompensa dos bons era uma verdade inquestionável e inegociável. Por outro lado, Jó estava consciente de que não possuía nenhuma justiça própria e, por isso, sabia que precisava de um mediador ou intercessor (Jó 19.21-24). Ele não quis mais se auto justificar. Ele tinha consciência inabalável de que somente Deus é justo e puro. Ele sabia que o seu “Redentor vive” e que, por fim, atenderia ao seu clamor. (2)
Nesse seu discurso, Bildade voltou a afirmar que Jó era enganoso em seus argumentos, que apresentava artifícios ao invés de palavras (Jó 18:2), imputando ao discurso do patriarca os vícios do seu próprio discurso, pois as considerações de Jó estavam baseadas em fatos, enquanto que Bildade prendia-se a supostos ensinamentos antigos (Jó 8:8-10), mencionados, mas não demonstrados (e aqui vemos como Bildade agia como Elifaz, buscando o famoso argumento da autoridade da tradição), para dali tirar conclusões que não tinham qualquer confirmação histórica ou fática.
Bildade iniciou seu discurso procurando menosprezar a pessoa de Jó diante de Deus, querendo fazer-lhe crer que ele nada significava, ante a sua pequenez, para o Criador (Jó 18:4). Esta ideia de um Deus distante e indiferente, que não se importa com o homem, constitui um traço do "deísmo", uma outra característica dos discursos dos amigos de Jó, principalmente Bildade. Mais uma vez, observamos que a teoria de Bildade está desmentida cabalmente nas Escrituras Sagradas, pois Deus observava de perto o patriarca Jó, a ponto de considerá-lo o homem mais excelente de seu tempo (cf. Jó 1:8). Indubitavelmente, para um teólogo da prosperidade material, alguém que está na miséria como estava Jó não deve mesmo valer coisa alguma; mas, tal critério de avaliação não é o critério divino, pois, neste passo, Jesus foi bem enfático: "a vida de qualquer não consiste na abundância do que possui” (Lc.12:15).
2. A subversão da ordem moral
Continuando o seu discurso, como setas inflamadas, que atingiam o atribulado Jó, Bildade não media esforços para difamar ainda mais o caráter de Jó. Para ele, as desgraças incididas sobre Jó era por causa da quebra da moralidade estabelecida. Bildade entendia que o universo é controlado por leis morais inabaláveis, e que Jó subverteu essa ordem moral ao pecar contra Deus, e que escondia esse pecado cometido; por causa disso, vieram sobre ele consequências deletérias. Segundo esse entendimento de Bildade, ser justo é se adequar à dinâmica dessas leis morais; logo, achar que os ímpios prosperam é mera ilusão. “No seu entendimento, a prosperidade dos maus assemelha-se as raízes de uma árvore que foram cortadas, cujos ramos, embora mantenham a aparência de verdor por algum tempo, necessariamente murcharão (Jó 18:12-16). Ao não reconhecer isso, Jó estaria tentando subverter a ordem moral aceita”.
Bildade é enfático ao dizer que o ímpio, e não o justo, é quem sofre sobre a face da Terra. Ele repete o refrão de que os perversos cairão “na rede” de seus próprios pecados e, em seguida, fornece uma lista das desgraças que sobrevém ao lar dos pecadores (Jó 18:5-21). Ele diz que o ímpio terá a sua luz apagada, que terá seu lar destruído, que ocasionará a sua ruína pelos seus próprios passos e caminhos, que terá doenças, será arrancado da sua tenda e será levado até a presença do "rei dos terrores"(Jó 18:5-15), sua memória perecerá na terra, as praças não terão o seu nome e nem mesmo sequer terá descendência, tudo isto porque não conheceu Deus (Jó 18:16-21). Bildade estava certo sobre os homens sofrerem por causa de seus pecados, porém, errado ao aplicar esse princípio no caso de Jó, pois nem todo sofrimento é resultado direto do pecado individual.
Em sua resposta a este segundo discurso, Jó denunciou que Bildade só fazia entristecer a alma de seu ouvinte (Jó 19:2); que seu discurso era despido de amor e de compaixão, não sendo este o tipo de discurso que deve provir da boca de um servo de Deus (2Co.1:4; 1Ts.5:14). Jó, antes de sua prova, bem ao contrário, era portador de mensagens confortadoras e consoladoras (Jó 29:11,21,22). Como tem sido o nosso discurso com relação aos nossos semelhantes?
Jó voltou a afirmar que estava sofrendo uma provação da parte de Deus e que sua maior aflição não era o fato de ter perdido bens, ou mesmo os filhos, mas de sentir abandonado pelo Senhor, perdendo toda a esperança (Jó 19:6-12). Afirmou que estava incompreendido pelos próprios semelhantes seus e, a começar de sua mulher e de seus servos e criados, ninguém mais lhe honrava nem sequer admitia a sua companhia (Jó 19:13-19). Jó encontrava-se em total solidão. Assim se lamentando, Jó mostrou haver bens maiores do que as coisas materiais. Revelou a Bildade que as coisas materiais não são o Norte nem o critério para se avaliar a vida de alguém e que há valores muito mais importantes do que as riquezas ou as finanças na vida de um ser humano. O que mais deixava Jó triste era a falta de compaixão de seus amigos e a observação superficial e materialista que estava sendo feita por eles, a ponto de, insensíveis, começarem a acusá-lo, ao invés de a ele se ajuntarem (Jó 19:21-24).
3. Contemplando a cruz
Diante das acusações inflamadas do seu amigo, Jó, mais uma vez, dirigiu-se diretamente a Deus e, contra a preocupação de Bildade a respeito da falta de prosperidade material, ele apresentou uma esperança que superava a dimensão desta vida terrena. Nada mais possuía Jó, nem mesmo o desejo de viver doente e abandonado por todos, mas algo não lhe havia sido tirado: a certeza de que seu Deus era um Redentor e que Ele vivia e que, por fim, se levantaria sobre a terra e, mesmo depois de consumida a sua pele, na sua própria carne ele ainda veria a Deus (Jó 19:25-27).
“Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade me desfalece o coração dentro de mim”.
Com estas palavras, Jó não quis mais se defender diante dos seus amigos; ele abandona toda instância humana e apela para um eficiente mediador (redentor), alguém totalmente justo, que vai ficar entre ele e Deus, e que defenderá sua causa. É aí que ele tem uma visão da cruz: “Eu sei que meu redentor vive” (Jó 19:25).
Note o objeto da esperança de Jó: “verei a Deus”. Em vez de dizer “verei as ruas de ouro, os muros de jaspe, as portas de pérolas”, Jó diz “verei a Deus”. Essa é a essência e o significado do Céu; essa é a verdadeira esperança de todos os crentes.
O fato de Jó dizer que veria a Deus em sua própria carne depois da morte é uma firme indicação da ressurreição física, doutrina não muita difundida no Antigo Testamento, porém aceita como padrão pelos crentes judeus que viviam na época de Cristo.
No primeiro discurso de Bildade, Jó já avistara a necessidade de um mediador entre Deus e os homens. Agora, numa nova demonstração de uma consciência que está muito além da prata e do ouro perecíveis desta terra, o patriarca falou da esperança da ressurreição, da certeza de que Deus não é o Deus distante de seus amigos, mas um Deus que quer redimir o homem, que quer resgatá-lo, que quer livrá-lo e que, no tempo determinado, levantar-se-á sobre a terra para fazer justiça, justiça essa que não é aquilatada pelo que os homens tenham ou deixem de ter, como imaginava Bildade (e, hoje, como imagina os populares pregadores da prosperidade), mas por aquilo que está reservado para a plenitude dos tempos, o acerto de contas de todo o universo com o Criador.
Jó não estava interessado nos bens que havia perdido, pois ele sabia que, embora nada mais tivesse, uma coisa possuía que não lhe havia sido tirada: a certeza da salvação e de que, no momento aprazado por Deus, contemplaria, ressurreto, o seu Senhor vencendo toda a oposição e estabelecendo, de forma plena, a comunhão com o ser humano.
Consciente desta certeza de salvação, Jó, de forma ousada e direta, dirigiu-se a Bildade e aos demais amigos e os censurou. Ele insinuou que ao invés de acusarem o semelhante, ao invés de dizerem que deveria confessar um pecado inexistente, para que pudesse voltar a ser rico, deveria cada um verificar como estava diante de Deus, pois chegará o juízo divino sobre cada um e, nesse juízo, pouco importará o ouro ou a prata que alguém possa ter angariado nesta vida (Jó 19:28,29).
Qual tem sido a preocupação dos crentes nos nossos dias? Ter o carro do ano? Ter cada vez mais casas e empresas? Multidões têm ido buscar a Jesus com o intuito de enriquecerem e de serem prósperos. Mas, será que têm pensado no juízo que se seguirá à morte de cada um (cf. Hb.9:27)? Será que os crentes estão preparados para encontrar-se com o Senhor no dia do arrebatamento?
Lamentavelmente, poucos têm sido aqueles que têm seguido a ordem de prioridades do patriarca Jó, que falava o que era correto a respeito do caráter e dos propósitos de Deus. Muitos crentes têm se comportado como Ananias e Safira, que perderam a salvação porque quiseram dar prioridade às coisas materiais em detrimento do serviço a Deus (cf.At.5:1-11). Ainda é tempo de acordarmos e de observarmos que devemos buscar o reino de Deus e a sua justiça e que as demais coisas nos serão acrescentadas (Mt.6:33). (3)
III. O PECADO EM CONTRASTE COM A MAJESTADE DE DEUS
Neste tópico trataremos do terceiro discurso de Bildade (Jó 25:1-6). Aparentemente, compreendendo que não adiantava dizer muita coisa, Bildade apenas tentou desenvolver dois temas: a grande de Deus (Jó 25:1-3) e a insignificância de Jó (Jó 25:4-6).
1.Então, respondeu Bildade, o suíta, e disse:
2.Com ele estão domínio e temor; ele faz paz nas suas alturas.
3.Porventura, têm número os seus exércitos? E para quem não se levanta a sua luz?
4.Como, pois, seria justo o homem perante Deus, e como seria puro aquele que nasce da mulher?
5.Olha, até a lua não resplandece, e as estrelas não são puras aos seus olhos.
6.E quanto menos o homem, que é um verme, e o filho do homem, que é um bicho!
Neste discurso, extremamente breve, Bildade limitou-se a dizer que o homem não pode ser considerado justo diante de Deus e que o homem é como um verme, como um bicho diante de Deus. Ele exaltou a grandeza de Deus, mas defendeu um abismo intransponível entre o Criador e a criatura.
1. A grandeza de Deus
Bildade destacou a onipotência divina e rebaixou Jó (Jó 25:1-6). Não há nada de errado defender a majestade do Altíssimo, todavia, Bildade, nesta sua maneira de exaltar a Onipotência de Deus, criou um abismo que não existe entre a criatura e o Criador, teoria defendida pelo segmento deísta, que defende a seguinte doutrina: “Deus criou o mundo, mas ausentou-se dele”. Esta é uma doutrina que não tem nenhum amparo nas Escrituras Sagradas. Como já dissemos, Deus é transcendente e imanente.
Jó anunciou, uma vez mais, ao contraditório de Bildade, a supremacia de Deus e quão longínquo está a dimensão divina da dimensão humana (Jó 26:5-14). Alertou seu amigo de que não podemos ousar determinar quais são os pensamentos ou os caminhos do Senhor, pois Ele habita numa dimensão totalmente diversa da nossa, tendo sob Seu controle os mortos, o inferno, suspendendo a terra sobre o nada (uma tremenda revelação que a ciência dos homens somente teria condições de admitir e conceituar milênios mais tarde). Diante de tamanha grandeza, diz o patriarca, "quem, pois, entenderia o trovão do Seu poder?" (Jó 26:14b).
É interessante observar que a teologia da prosperidade de Bildade, que somente contempla esta vida terrena, acabou instigando o patriarca a considerações tão elevadas que seus próprios argumentos serão utilizados pelo próprio Deus quando este, pela Sua infinita misericórdia, cessar o Seu silêncio e iniciar aquele maravilhoso inquérito que precede o término da provação de Jó, que estudaremos na Aula nº 12.
2. Onipotente, mas não ausente
Em seu discurso, Bildade enfatizou, mais uma vez, o que considerou ser a insignificância do homem diante de Deus. Segundo ele, se nem mesmo a lua e as estrelas são puras aos olhos de Deus (Jó 25:5), que esperança há para o homem, que não passa de “verme”? (Jó 25:6). Apesar de palavras bonitas e verdadeiras, foram pronunciadas sem amor, e por causa disso, Bildade falhou em ministrar às necessidades de Jó. Como afirma o pr. José Gonçalves, “Deus não deve ser visto apenas em sua força, mas, sobretudo, por seu amor. Ele nunca exaltou seu poder e grandeza acima do seu amor. Diferentemente do conceito apresentado por Bildade, o Deus que a Bíblia apresenta é poderoso e glorioso, mas, principalmente, misericordioso e gracioso”.
Bildade exaltou a Onipotência de Deus, mas a despeito de Sua grandeza, Ele não está ausente da Sua criação. Como já dissemos na Introdução, Deus é transcendente e imanente, ou seja, a despeito de habitar nas alturas mais insondáveis, e apesar de infinito e imenso, não permanece alheio às suas criaturas.
Em sua resposta ao discurso de Bildade, Jó denunciou que o discurso de seu amigo não tinha origem em Deus. Discernindo bem os ensinamentos trazidos pela teologia da prosperidade, o patriarca negou que ele pudesse ter sido originado em Deus, pois não tinha ele um propósito construtivo, mas meramente acusatório e, certamente, sem edificação. Para tanto, usou de ironia (Jó 26:2,3):
“Como ajudaste aquele que não tinha força e sustentaste o braço que não tinha vigor! Como aconselhaste aquele que não tinha sabedoria e plenamente lhe fizeste saber a causa, assim como era!”.
Jó afirmou não desconhecer que a justiça divina, a seu tempo, será feita e que o ímpio sofrerá a retribuição pelo mal que cometer, mas isto não significa que o justo não possa sofrer tribulações. Na eternidade não há riqueza que poderá salvar o rico e, portanto, a prosperidade material que o pecador tenha nesta vida em coisa alguma altera o caráter moral do Todo-poderoso (Jó 27:11-23). Assim, não é com valores terrenos ou riquezas materiais que podemos entender e enxergar a comunhão de alguém com o Senhor.
Jó declarou a Bildade que continuaria submisso ao Senhor e que sua fé não dependia da sua prosperidade material:
"Enquanto em mim houver alento, e o sopro de Deus no meu nariz, não falarão os meus lábios iniquidade, nem a minha língua pronunciará engano” (Jó 27:3,4); “ (…) à minha justiça me apegarei e não a largarei (Jó 27:6a)".
Que palavras bem diferentes daquelas dos adeptos da doutrina da confissão positiva, prima-irmã da teologia da prosperidade, que "determinam", "declaram", "decretam" bênçãos e que ameaçam ao Senhor para que, de imediato, cumpra os seus desejos e caprichos, sob pena de desmoralização e de abandono da fé, como se Deus fosse um empregado qualificado, um almoxarife, pronto a servir os crentes.
CONCLUSÃO
Nesta Aula tratamos dos três discursos de Bildade contra o seu amigo Jó:
-Em seu primeiro discurso, Bildade ficou transtornado porque Jó ainda se dizia inocente, enquanto questionava a justiça de Deus. O argumento de Bildade foi este: Deus não podia ser injusto, e Deus não puniria um homem justo; assim sendo, Jó deveria ser injusto. Bildade erroneamente presumiu que as pessoas sofriam apenas como resultado dos seus pecados.
-Em seu segundo discurso, Bildade pensou que sabia como funcionava o universo, e viu Jó como uma ilustração das consequências do pecado. Bildade rejeitou o lado de Jó na história, porque este não se encaixava em sua opinião sobre a vida. É fácil condenarmos Bildade, pois seus erros são óbvios, no entanto, infelizmente, costumamos agir da mesma forma quando nossas ideias são ameaçadas.
-Em seu terceiro discurso, Bildade ignorou os exemplos de Jó sobre a prosperidade do perverso. Em vez de tentar contestar Jó, Bildade acusou-o de orgulho, por afirmar que o seu sofrimento não era resultado de qualquer pecado. Jó nunca alegou ser isento de pecados, mas que o seu pecado não poderia ter causado tamanho infortúnio.
Cada um dos discursos de Bildade pôs em destaque a sua teoria teológica baseada na tradição religiosa. Em cada um dos tais, ele manifestou que não cria na inocência de Jó e, por isso, atribuiu o seu sofrimento à existência do pecado. Pasmem, a teoria de Bildade ainda continua em pleno vigor em diversos seguimentos do cristianismo. Que Deus nos proteja!